
eudoro e o logos heráclito
um filme de reginaldo gontijo e luiz suffiati

10/11 Quinta-feira (Dois Candangos - UnB)
14h Abertura
Participantes: Depto. de Filosofia (UnB), Digitalina Filme e Grupo Eudoro.
16h Mesa 1: Memórias
Participantes: João Ferreira, José Santiago Naud e Ordep Serra
Mediadora: Maria Paula Vasconcelos
17:30h Mesa 2: Filosofia neo-helênica no Brasil e na América Latina
Participantes: Constança Marcondes César e Bruno Borges
Mediador: Júlio Cabrera
19h Mesa 3: Filosofia e Complementariedade em Eudoro de Sousa
Participantes: Hilan Bensusan, Walter Menon e Leonel Antunes
Mediador: Luiz Fernando Suffiati
11/11 Sexta-feira (Dois Candangos - UnB)
14h Mesa 4: Mouseion Eudoro de Sousa
Participantes: Bruno Borges, Pedro Mesquita e Severino Francisco
Mediador: J. Santiago Naud
16:30h Mesa 5: Helenismo e História
Participantes: Marcus Mota e Eduardo Carreira
Mediador: André Pontes Gaio
19:30 Mesa 6: Mito e Linguagem
Participantes:Ordep Serra e Reginaldo Gontijo
Mediador: Francisco K
22:00 Confraternização de enceramento

Eudoro de Sousa - Fragmentos de Dionísio em Creta: estudos de mitologia e filosofia da Grécia antiga, 1973 - 2004
FRAGMENTOS
“... desde o primeiro dos Jônios até o último dos Neo-platônicos, a religião grega permanece autêntica selva sevaggia, em que o filósofo e o historiador a todo o passo se enredam em contradições imobilizantes.” Dionísio em Creta, pág. 7
“... nunca será possível escrever uma verdadeira história da religião grega.” Dionísio em Creta, pág. 8
“... de certo modo, essência da religião grega é a sua não-historiabilidade.” Dionísio em Creta, pág. 9
“... na sua maior parte, a lenda heróica e a mitologia, cujos documentos mais antigos se acham entretecidos na “intriga” da epopéia, teria surgido na segunda metade do II Milênio a.c., - por conseqüência, muitos séculos antes da data em que presumivelmente foram compostas a Ilíada e a Odisseia.” Dionísio em Creta, pág. 9-10
“... Daí, facilmente se depreende quão desesperada se torna a tarefa de distinguir o “antigo” do “moderno” e o “mais recente” do mais remoto”. Dionísio em Creta, pág. 10-11
“Cultura Minóica é a fórmula com que, por empréstimo lendário, se denominou a requintada civilização que, na idade do Bronze, floresceu na ilha de Creta. Dionísio em Creta, pág. 12
Cnosso, soberba morada do Minotauro.
Características da cultura minóica:
“... 1) a freqüentíssima figuração plástica de cenas cultuais, em que intervém, com absoluto predomínio, uma divindade feminina; 2) a não menos freqüente estilização do bucrânio, a que os ingleses chamam “horns of consecration”; 3) a lábrys ou bipene, machado de dois gumes, que, sem dúvida, foi instrumento de sacrifício do Touro Sagrado, e talvez entre na composição da palavra “Labirinto”; e, finalmente, 4) os thóloi ou sepulturas circulares, cobertas por falsa abóbada, com acesso através de um “drómos” mais ou menos extenso. Dionísio em Creta, pág. 13
A civilização de Creta acha-se originalmente relacionada com a Mesopotâmia pré-semítica, e mesmo pré-sumeriana.
“... Na sua forma definitiva, a concepção arquitetônica que se singulariza em toda a região egeica, é, além de mencionada assimetria do conjunto, a função do pátio central, designadamente, o papel que desempenha como centro, fixo e inalterável, de um movente complexo periférico.” Dionísio em Creta, pág. 14-15
“... O pátio é um dado prévio, um princípio dinâmico, e não, apenas, o espaço que se mantém de reserva, no meio de contínua ou intermitente edificação de blocos; Dionísio em Creta, pág. 15
“... no interior, precisamente no pátio central, e não em qualquer área exterior, próxima ou distante dos palácios, é que se realizavam as tauramaquias celebrizadas por tão elevado número de testemunhos figurados.” Dionísio em Creta, pág. 15-16
“Sem dúvida, na arte cretense, predomina a figuração antropomórfica da Magna Mater.” Dionísio em Creta, pág. 16
“... o touro é uma epifania de Dioniso.” Dionísio em Creta, pág. 17
“Contra uma recuada antiguidade do culto de Dioniso, contra a hipótese de sua origem mediterrânea e pré-helênica, o argumento mais ponderável consiste em invocar os testemunhos da tradição literária, que, a partir de Homero, vêm afirmando e reafirmando que, na Grécia, o deus é um intruso e, em princípio, um indesejável”. Dionísio em Creta, pág. 18
“Por consequência, nada obstaria a eu déssemos o nome de Dionisoa o Touro Divino da ilha de Creta”. Dionísio em Creta, pág. 19
“... A idéia é esta: a arte minóica, a arte de Creta em conjunto, e não, apenas, em tal ou tal objeto, em uma ou outra das suas formas singulares, encontra-se, toda ela impregnada de “dionisíaco”, daquele mesmo espírito de ebriedade e loucura, que transparece com tão sombrio fulgor nos versos das “Bacantes”. Dionísio em Creta, pág. 19-20
“Que intenção teria movido o trágico da “medida humana” a descrever com tão vivas cores a tempestade emocional que irrompe dos mais profundos estratos da alma, dos abismos do inconsciente, em que o indivíduo se distrai da própria individualidade e da razão pragmática que o insere na ordem social instituída, - não o sabemos.” Dionísio em Creta, pág. 20
“Qual é, pois, o Dioniso das Bacantes? (...) Deus do elemento líquido, que, perseguido por Licurgo homérico, se lança no mar, depósito imenso e inesgotável do princípio que, como seiva ou sangue ou sêmen, sustenta toda a vida vegetal e animal; “deus da árvore”, dendrites ou éndendros, e deus phloios consubstanciado nas plantas verdes e nas flores das árvores frutíferas; deus do vinho, que liberta as almas das tristes cadeias da individuação; deus mainómenos, enlouquecido e enlouquecedor, que se compraz no tumultuoso tropel das Mênades e das Bacantes, - deus das mulheres que, percorrendo desvairadas uma terra toda ela convertida em seio ubérrimo, donde brotam o leite e o mel, cingidas de serpentes e coroadas de hera, amamentam as bestas feras, para logo as destroçarem, por suas mãos já esquecidas do gesto vivificante; deus macho caprino ou taurino, que sofre na própria carne, como inexorável destino de quanto vive na natureza selvática dos dias primevos, o grande deicídio cosmogônico e antropogônico; em suma, um deus trágico, por excelência, deus das contradições implícitas em uma realidade indomada pela philantropia e pela humanitas.” Dionísio em Creta, pág. 20-21
“... Entre todos os cultos gregos da época clássica, só o de Dioniso apresenta: primeiro, o caráter extático do ritual; segundo, a epifania tauromórfica da divindade; terceiro, a ambiência feminina da religião.” Dionísio em Creta, pág. 21
“... o culto de uma divindade-dema é a renovada comemoração de um drama, cujos atos decorrem no fim dos tempos primordiais e, por conseguinte, no início do tempo presente, em que se passa a vida natural do homem tal como ele existe. O mai notável, porém, é que esse drama representa sempre o assassínio do dema e sua consecutiva transformação em alguma planta útil. Demais, todos os mitos do ciclo cultural em apreço, referem que, ao morrer, é a própria divindade que empreende a primeira viagem ao reino dos mortos, para se transformar, ela mesma, nesse reino, cuja cópia terrestre é o lugar do culto”. Dionísio em Creta, pág. 27 (comentário ao “Dema indonésio”. Segundo Eudero, o culto de Dioniso se enquadraria nesta categoria de explicação, além de Perséfone na Grécia, Átis na Ásia Menor, Baal e Adonis na Síria e Osiris no Egito.)
“Mesmo assim, ainda não desistiríaamos de afirmar que a mitologia grega é a eutanásia do mito pré-helênico, e que o traço mais característico do “Milagre”, da grande novidade que surge no Mundo Antigo com a Grécia Clássica, reside, de certo modo, na negação da sua componente mitológica. (...) A cultura hebraica, com o seu monoteísmo intransigente, é a-mitica, na culminância da sua história; a cultura helênica, com o seu panteísmo, tende a sê-lo, mas por uma via de compromisso, através da qual vai fundindo e confundindo todos os mitos num só, - o mito do Homem, decerto o mais helênico dos mitos da Grécia, se não o seu único mito.” Dionísio em Creta, pág. 31-31
“... o Pré-helênico, qualquer que ele seja, mediterrâneo ou oriental, egeo-cretense, egeo-anatólico ou egeo-asiático, representar-se-ia pelo des-humano, nos mitos e nos ritos que a Grécia foi preterindo: pelo desumano no Homem, pelo desumano na Natureza, pelo desumano na Divindade.” Dionísio em Creta, pág. 31-32
“... Historiável, é apenas a exegese filosófica do Mito do Homem, de um homem que se constitui como centro de um círculo, para além do qual e sem que o possam transpor, ficaram os deuses, como forças de uma natureza que nada tem de humana.” Dionísio em Creta, pág. 32
“... as escavações dos mias baixos níveis neolíticos, efetuadas por John Evans, de 1958 a 1960, no pátio central do palácio de Cnosso, demonstraram que os primeiros habitantes da ilha vieram da Anatólia ocidental, trazendo cerâmica que inequivocamente lhes identifica a proveniência”. Dionísio em Creta, pág. 33
“... em épocas históricas, Éfeso, cidade da costa ocidental, se celebrizou pela sua Ártemis, figurada por estátuas cobertas de seios. Porém, o mais espantoso é que para o mesmo lado aponta a pintura mural, que representa favos de mel, abelhas e crisálidas, pois a Ártemis de Éfeso, era servida por um corpo de sessenta sacerdotizas, chamadas “melissai”, isto é, “as abelhas”. Dentro de um dos seios protuberantes das paredes de um dos santuários, encontrou-se co crâneo de um abutre. Também aqui não será despropositado observar, com Mellaart, que nenhuma imagem tão bem traduziria a idéia de que “no meio da vida, preside a morte”. Dionísio em Creta, pág. 33
“ a vida não subsiste, senão porque a morte existe.” Dionísio em Creta, pág. 37
“... o complexo “Deusa Mãe/Touro Divino” remonta, na Anatólia, ao sétimo milênio a.C. e que não seja impossível que o mesmo se transladasse para Creta (...) Na Ásia Menor, a deusa teve (desde quando?) o nome de Cibele; em Creta, o nome de Reia. O séquito mítico, que historicamente pode significar um corpo sacerdotal, na Ásia Menor, é constituído pelos c Coribantes; em Creta, pelos Curetas.” Dionísio em Creta, pág. 38
“ Já seria “orgiástico”, exercício preparatório do êxtase, provocado ou não, por entorpecentes, o ritual de Çatal Hüyük, como, muito provavelmente, foi o de Creta?” Dionísio em Creta, pág. 38
“... em sua pátria anatólica, reside a parte mais característica da orgia dionisíaca, em especial, o estímulo da música e da dança vertiginosa que levam ao êxtase, o sentido de união com o divino e a capacidade de captar visões, e como tantas vezes tudo isto surgiu no decorrer das idades, nessa região particular”. Dionísio em Creta, pág. 39
“... quem conhece o poder da dança, habita em Deus”. Dionísio em Creta, pág. 39
Eumênides e a Diacosmese da Terra Mãe.
Eumênides, último drama da famosa trilogia de Orestes, exibe o conflito entre antigos e novos deuses, as leis não escritas da Piedade e as leis escritas da Cidade. Dionísio em Creta, pág. 75
Papel desempenhado pela Eríneas: “ (...) representar e garantir o cumprimento de uma venerada ordem universal que do arbítrio humano poderia sofrer ultraje”. Dionísio em Creta, pág. 75
“... Eis porque o drama é ainda exterior ao Orestes de Ésquilo, mas já interior ao Orestes de Eurípedes: aquele ainda não hesita diante do crime, este já duvida da legitimidade do mandato apolíneo”. Dionísio em Creta, pág. 76 (sobre qual o maior crime? Mariticídio ou matricídio?
“... Entre Ésquilo e Eurípedes estão os resultados da educação sofística...” Dionísio em Creta, pág. 76
“Concluamos, pois, que só na ordem universal que as Eríneas representam, se distinguem os atos de Orestes e de Clitemnestra. Dos dois, só o de Orestes é crime, posto que só ele corta os laços de sangue; pelo contrário, na ordem universal que Apolo e Atena representam e defendem, ambos os atos são criminosos, sendo, todavia, a culpabilidade de Clitemnestra maior que a de Orestes, do momento em que os deuses da Cidade e do Olimpo santificaram os direitos do Pai. As Eríneas representavam os direitos da Terra Mater, da Natureza; Apolo e Atena defendiam os direitos da Polis e do Olimpo ... A “contradição implícita na lenda heróica” (Untersteiner) encontra-se superada mediante subordinação de uma ordem universal telúrica a uma ordem universal urânica, de uma religiosidade ctônica a uma religiosidade olímpica.” Dionísio em Creta, pág. 78
“Pois bem, o autor das Eumênides fez atuar na cena trágica certos personagens – homens e deuses -; e a ação é simbólica, neste sentido: sob a forma humana homens e deuses representam outra ação, que, no entanto, vai cumprir-se também na própria ação representada”. Dionísio em Creta, pág. 79
“Qual é o símbolo? (...) Qual é ação cósmica que a ação trágica reproduz? Já o dissemos: Uma contra a outra, lutam duas ordens universais, às quais daremos agora o nome certo, duas discosmeses, - a da Terra-Mater e a do Coelum-Pater. Dionísio em Creta, pág. 79
“O Kosmos, assevera Crisipo, é o sistema do Céu e da Terra e de todos os entes naturais que neles se encontram; ou o sistema dos deuses e dos homens e de todos os seres por eles produzidos. De outro modo se pode dizer que Kósmos é o deus, por virtude do qual, a diakósmesis tem a origem e a plenitude” (Stoic. Veter. Frag. II 168). Dionísio em Creta, pág. 79
“Com efeito, n a religião grega, não há um Kósmos, mas muitos Kósmoi, e qualeur dos grandes deuses pode ser o agente de uma diakósmesis, um ordenador do universo natural, humano e divino, segundo as específicas determinações de sua própria essência. (...) Há, portanto, um Kósmos de Artemis e um Kósmos de Apolo, um Kósmos de Deméter e um Kósmos de Dioniso, e assim por diante.” Dionísio em Creta, pág. 80
“Acresce que a diacosmese de um deus se dilata até à coordenação de outros deuses e à subordinação de outras potências sobrenaturais e sobre-humanas, posto que não vive isolado entre a multidão dos demais deuses, demônios, heróis e dos que habitam o Hades (Plat. Rep. P. 392 A).” Dionísio em Creta, pág. 81
Tanto na Teogonia de Hesíodo, quanto nas Eumênides, “(...) a sucessão começa pela ordem universal de Gaia.” Dionísio em Creta, pág. 81
“Sob os arruinados templos dos deuses olímpicos, os destroçados palácio e baluartes dos heróis homéricos, as cinzas de varões ilustres e a poeira de cidades renomadas, jazem os ídolos femininos da Egeida: total ou parcialmente nua, esteatopígia, “em forma de violino”, com o busto envolto em uma estola de onde emergem os seios proeminentes, de pé ou acocorada, o kteís triangular, as ancas desmedidamente largas, o umbigo enorme, que os véus não disfarçam, solitária e altaneira sobre as cumeadas, nas cavernas e nas fragas da montanha, ou escoltada de animais, soberana das feras, cingida de serpentes, sobrepujada de pombas, ladeada de leões, leopardos, cervos, touros ou machos caprinos, - Grã-madre ou Doce Virgem -, a anônima Senhora de Creta, das Ciclades e da Anatólia, foi sem dúvida, a suprema, se não a única, divindade do mediterrâneo Oriental, antes que os gregos ali viessem cumprir a sua missão histórica.” Dionísio em Creta, pág. 81-82
“(...) Mas, uma ou múltipla – e isto é o que mais importa -, a divindade feminina reina em Creta e nas Cíclades, na cosa da Ásia menor e da península Grega, na Tessália, na Arcádia e na Ática, muito acima das divindades masculinas, figurando, estas, relativamente à deusa ou às deusas, como “acólitos” ou “paredros”, filhos ou amantes, como se tivessem por única missão, realçar seus caracteres de fecundidade maternal.” Dionísio em Creta, pág. 82
“Nos antigos mitógrafos, a sucessão genealógica dos “deuses, demônios, heróis e dos que habitam o Hades”, abre com as núpcias do Céu e da Terra.” (Ouranós e Gaîa) Dionísio em Creta, pág. 85
“A genealogia pressupõe uma determinada concepção do génos: a “veneranda estirpe dos deuses” é concebida na mente do poeta, de tal maneira que, por um lado, todos os indivíduos de cada geração representam, esparsas, todas as primordiais características dos progenitores, e, por outro lado, a sucessão das gerações desenvolve, no curso do tempo, a respectiva essência intemporal. (...).”Dionísio em Creta, pág. 85
Núpcias do céu e da terra: na Grécia, esta situação é representada por Zeus e Deméter.
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a poesia de Homero assinala o fim de uma época e o princípio de outra época. Marca o término de uma ordem universal que, à falta de melhor designação, adjetivamos de telúrica, e o início de uma ordem universal que, por mostrar-se contrária àquela, pode chamar-se de urânica; em todo o caso, não erramos se afirmarmos que nos poemas homéricos já nem sequer resta lembrança do crepúsculo da dinastia de Gaîa e da aurora da dinastia de Zeus.” Dionísio em Creta, pág. 90
“(...) E este é o paradoxo: enquanto os deuses homéricos morrem na filosofia (...) talvez porque numa atitude pré-filosófica tiveram origem, são os outros, os pretéritos, ou os preteridos por Homero, que ascenderão ao supremo grau de consciência religiosa, nos séculos derradeiros do paganismo.” Dionísio em Creta, pág. 92
“(...) As Eumênides representavam um momento de exacerbada contradição entre concepções religiosas incompatíveis no plano da pura racionalidade. Talvez mais intensamente que nenhum outro, a viveu Ésquilo (...) A tragédia não resolve o litígio entre as duas ordens universais, senão por tentiva de anulação de uma delas: as Eríneas só subsistiram enquanto não se precisou de “razões” para crer na sua existência; em Apolo desponta a arte da persuasão por meio do logos e no momento da contradição, o Areópago, entre “lamentos” e “razões”, optou, tomando o partido dos deuses olímpicos, contra os deuses ctônicos.” Dionísio em Creta, pág. 92-93
Mitologia e Ritual
“(...) mito e rito constituem-se como dois aspectos do mesmo fenômeno: o rito, como mito em atos; o mito, como rito em imagens. No drama, que, por assim dizer, seria a vivente matriz da consciência religiosa, as imagens aderem intimamente aos atos, e de tal modo, que ato e imagem podem e devem ser considerados como dois pólos – o anímico e o corpóreo – da mesma entidade dramática: o mito é corpo do rito, o rito, é alma do mito, e a síntese é drama ritual, em que os deuses se apresentam aos homens e os homens conhecem a presença dos deuses.” Dionísio em Creta, pág. 97.
“... os temas míticos constituem elementos estruturais da psique humana.” Dionísio em Creta, pág. 97
“... “pré-lógico” não quer dizer “ilógico”, mas tão só, que a lógica do primitivo não articula a realidade apreensível, mediante as mesmas categorias do civilizado.” Dionísio em Creta, pág. 98
“E agora, que é um Símbolo? (...) uma coisa advém símbolo, quando vem a ser aquilo mesmo que significa, sem deixar de ser o que é (5)”. Dionísio em Creta, pág. 99
“Sabemos, por conseguinte, que o exercício de certo gênero de ação humana introduz no conhecimento a categoria do simbólico; que por virtude de certos atos, as coisas ascendem a mais alto grau de realidade. E reconsiderada com mais demora a exemplificação que precede, vemos que o símbolo é a síntese sensível do que a coisa é em si mesma e do que ela é na sua significação; quer dizer, o que na prática da vida banal é coisa particular significativa, converte-se, na excepcionalidade da ação festiva, no ser da própria significação. Sabemos, enfim, que por análise lógica caem, cada um para seu lado, o particular significativo e o universal significado. Desconhecido, só resta o nome que devemos dar ao gênero de ação humana, que institui no conhecimento a categoria do simbólico.” Dionísio em Creta, pág. 100-101
“... Mediante o exercício do ritual, participantes do drama religioso, todos os homens se detêm fenomenologicamente no momento que nada impede chamar pré-lógico, se por esta palavra entendermos o tipo de mentalidade, ou antes, o grau de mentalidade, em que as coisas se volvem em símbolos.” Dionísio em Creta, pág. 102
“... Toda a criação é símbolo. É-o, todavia, só por virtude própria do rito. No decorrer do drama ritual, as mãos do sacerdote não tocam coisas, mas causas. (...) Mas sóo participante do culto compreenderá como, por virtude própria dos ritos, ” Dionísio em Creta, pág. 102
“... Porque, se é certo que as imagens e as idéias que expressam as relações do homem com Deus ou os deuses, se desenvolvem em sua alam e seu espírito, também é certo que a consciência de tais relações já emerge, ainda que obscuramente, do seu corpo, cujos gestos, no culto, “explicam”, por assim dizer, um juízo tácito acerca do ser e do poder da divindade.” Dionísio em Creta, pág. 103
“Demonstraremos, como demonstrar se possa, que, na religião grega, ação ritual, imagem poética e idéia filosófica são como que as projeções em três planos funcionais, do mesmo projeto.” Dionísio em Creta, pág. 105
“... a poesia nasceu mitologicamente, no momento em que os deuses receberam nomes?” Dionísio em Creta, pág. 106
“... O nascimento da mitologia é o trânsito do drama ao poema, do mito, sob a forma ritual, ao mito sob forma verbal. Os deuses inominados passam a nominados e cognominados; a celebração dramática, em que participam deuses e homens, passa a narrativa poética de uma ação divina sobreposta a uma ação humana. Dionísio em Creta, pág. 106-17
“... Imaginemos, então, esse bailado humano, parcela do bailado cósmico, em que o ritmo corporal prolonga o ritmo natural; em que o corpo humano renova – sem repeti-la – a própria renovação rítmica da natureza. Imaginemos, por instantes, que o próprio movimento se tornou audível, - eis o mito em sua forma dramática. Imaginemos, depois, que o movimento cessa de súbito, e agora, instrumentos e vozes, a compasso, prolongam ou recordam o ritmo da dança, - eis a metamorfose que pretendíamos sugerir. Desperta o sonâmbulo bailador, o drama se transmuta em poema: nasce a mitologia.” Dionísio em Creta, pág. 107
Em Elêusis, “Todos os anos chegavam inúmeras gentes de todos os quadrantes do mundo helenizado, e mesmo de nações distantes, ao encontro de uma prometida revelação: a noite que envolve os confins da vida e da morte seria vencida por esplendorosa luz e uma palavra romperia o silêncio dos séculos acerca do enigma da humana existência na terra. É o que estava prometido: bema-aventurados os que viram tais coisas, antes de baixar ao túmulo, pois esses conhecem o fim da vida e o princípio que Zeus lhe deu.” Dionísio em Creta, pág. 108
“Copiosos são os monumentos que testemunham da piedade, do fervor e do entusiasmo que o culto eleusino mereceu da antiguidade pagã. Escasseia, todavia, a documentação que comprove o mérito autêntico desse culto, posto que o silêncio do iniciado é, por assim dizer, a própria definição do mistério.” Dionísio em Creta, pág. 108-109.
Ver descrição dos rituais dos mistérios de eleusis: pág. 109 a 111. (Ler, importante)
“Mystérion, ou melhor, mystéria – só o plural é testemunhado pelos documentos mais antigos – designa um gênero de festividades religiosas, que se distinguem de todas as outras pelo mandamento do segredo. O próprio nome já denuncia esta característica diferencial: myeîn, “iniciar”, ou myeisthai, “ser iniciado”, que, etimologicamente, poderíamos traduzir por “o que mantém os lábios cerrados”, deve ter constituído duramente muito tempo um dos mais poderosos motivos para crer que a iniciação nos mistérios consistia em transmitir e explicar oralmente uma doutrina oculta, algo indizível e inefável acerca do ser divino e do destino do homem e do kósmos. Dionísio em Creta, pág. 111-112.
Aristóteles: “Os iniciados não são submetidos a qualquer ensinamento, mas a uma experiência, mediante a qual adquirem certa disposição de ânimo, provisto que de tal sejam capazes.” Dionísio em Creta, pág. 112.
“... A dança nasce com o próprio universo; é tão remota como Eros, o mais antigo dos deuses. Preside à assembléia dos astros, à conjunção das estrelas e dos planetas. O harmonioso movimento das esferas é a dança primordial. Preside à assembléia dos astros, à conjunção das estrelas e dos planetas. O harmonioso movimento das esferas é a dança primordial. Mas quando, por dom magnífico das musas e do Musageta, a gloriosa orquestra universal desce ao terreno habitáculo dos homens, a dança, que em si tinha a própria finalidade, devem uma arte mimética, como todas as artes, pela qual o ritmo gesticulado se prolonga até atingir o propósito de “uma ciência de enunciar os pensamentos e de revelar claramente as coisas mais obscuras.” Dionísio em Creta, pág. 112.
“... E posto que não se submeteram a qualquer ensinamento, quer dizer, visto que não há uma doutrina antecedente e uma ação que consequentemente a expressa, temos de admitir que o ritual, ou a dança, é a única expressão do mistério. (...) o que significa: falar do conteúdo da revelação, fora do lugar e do momento em que ele pode efetivamente revelar-se, é o que se faz, quando fora do santuário, se imita a dança, ou seja, aquele drama ritual que é a única maneira de “dizer” o que, pela linguagem somente, jamais poderia ser dito.” Dionísio em Creta, pág. 112-113.
Aduzir:
Mystaí = iniciados
“Aristóteles viu lucidamente que, nos mistérios, não se dava a dramatização de um conhecimento comunicável por doutrina de antemão expressa em linguagem falada ou escrita, mas o desempenho de um drama, por meio do qual se obtinha uma predisposição anímica sui generis. (...) Predisposição para que?” Dionísio em Creta, pág. 114.
Hierofante é “aquele que mostra” ( de phaíno), e não aquele que “fala” (de phanai). Pag. 114
“... Demeter significa a Terra-mãe do cereal, representa só metade de uma revelação, a alegoria mais acessível à mentalidade lógica; a outra metade da mesma revelação, poderíamos expressá-la nos seguintes termos: “em tal particular aspecto, a Terra significa Deméter”; as duas metades reunidas, num todo que excede a soma delas, reproduzem o símbolo, através do qual, indiferentemente, Deméter é a Terra e a Terra é Demeter. “No que respeita a fecundidade e geração, a Terra é o modelo da mulher, não a mulher o modelo da Terra”, escreve Platão; o que significa: Demeter é a Terra. “Masculino, denominamos nós o vivente que gera noutro; feminino, o que gera em si mesmo... Dionísio em Creta, pág. 116-117.
“... Originalmente, este, é o significado de um ato ritual. O rito é a forma, o mito é a matéria, e a síntese desta matéria e desta forma, drama ritual, em que o pensamento significado ainda não se distingue do ato significante.” Dionísio em Creta, pág. 117.
“No momento em que Xenófanes refuta a “teologia” homérica e hesiódica, já se tornara patente crise originária da epopéia, pois a crítica dos primeiros filósofos, além de tudo o mais que possa mostrar, demonstra que os mitos não são inteiramente verídicos, senão quando vivem no ambiente próprio de sua veracidade, a religião, substancialmente unidos à forma própria da sua existência, a ação ritual. Fora do elemento religioso e dissociado da forma dramática, em que vive e existe, de vida e existência próprias, o mito é discurso acerca dos “deuses, semi-deuses, demônios, heróis e dos que vivem no Hades”, e, como tal, cai, sem defesa, no domínio da exegese alegórica, converte-se em imagem representativa de uma teoria cosmológica ou teológica. Mas, reconduzido à sua origem, bem se vê que a mitologia não nasceu de qualquer anseio por explicar o Mundo, o Homem e Deus: é pura expressão do encontro de homens com deuses, em um mundo que é, para cada encontro, o cenário em que o mesmo decorre.” Dionísio em Creta, pág. 117-118.
Mito Pré-Helênico e Mitologia Grega
“... Mas a descoberta da cultura denominada “minóica”, e a do substrato chamado “pré-helênico” ou “mediterrâneo”, e de certa unidade cultural do neolítico, em todo o Oriente, pelo menos desde o Indo até o Danúbio, tiveram por conseqüência a generalizada convicção de que o termo inicial, representado por Homero, também podia ser olhado como um termo final.” Dionísio em Creta, pág. 123.
“Pré-helênico”, conforme Nilsson, quer dizer apenas “micênico”. Dionísio em Creta, pág. 125
Em que sentido “pré-helênico”, no sentido de “micênico, queria dizer “aqueu” ou “cretense”; isto é, determinar com mais exatidão, até que ponto a mitologia grega, ou micênica, era produto do espírito indo-europeu ou da cultura egeo-anatólica.” Dionísio em Creta, pág. 125.
“A cultura hebraica, com seu monoteísmo, é a-mítica, pelo menos desde os grandes Profetas do Exílio; a cultura helênica, com o seu panteísmo, tende a sê-lo, mas por uma via de compromisso, através da qual vai fundindo e confundindo todos os mitos em um só – o mito do Homem, decerto o mais helênico dos mitos gregos, se não o único mito da Grécia.” Dionísio em Creta, pág. 126.
“... Toda a poesia da Grécia antiga, desde a jônica dos séculos VIII e VII a.C., até à alexandrina e romana, que ainda persiste no século V da nossa era, parece uma floresta encantada, em que os deuses e os homens parecem encontrar-se a todo o instante, para o amor ou para o ódio, para a vida e para a morte”. Dionísio em Creta, pág. 127.
“... Do plasma germinativo da cultura genuinamente grega, irrompe este fenômeno paradoxal: enquanto a filosofia negava as concepções míticas da realidade, a poesia não se afirmava senão através dessas concepções. Mas a mito-poética dos gregos é a eutanásia dos mitos pré-helênicos.” Dionísio em Creta, pág. 127.
“... Desde Heródoto ou Hecateu, estamos habituados a ler que não houve fundador de cultos, mormente de cultos iniciáticos, que não tivesse aprendido no Egito a linguagem dos deuses. (...) mais certo é todavia, que o Egito será até o fim da Antiguidade a pátria dos deuses e, por conseguinte, a originária fonte das histórias que poetas e sacerdotes cantam e contam acerca das respectivas vicissitudes celestiais, terrenais e infernais.” Dionísio em Creta, pág. 128-129.
O mundo “pré-helênico” é tão vasto quanto o Mundo Antigo.
“... Ora, a autêntica novidade grega é o Mito do Homem, que já se nos depara completamente originado na poesia de Homero; e se percorrermos ao invés o caminho do Oriente para o Ocidente, a “humanidade” dilui-se e esvai-se em reis e sacerdotes, guerreiros e artesãos, pastores, caçadores e agricultores, mulheres privadas e públicas, em suma, em toda a casta de gentes que, na parte ou no todo, nunca perfizeram o Homem.” Dionísio em Creta, pág. 132.
“... o “pré-helênico”, qualquer que ele seja, egeu africano ou asiático -, representar-se-ia pelo desumano, nos mitos que a Grécia foi preterindo; pelo desumano no homem, pelo desumano na natureza, pelo desumano na divindade.” Dionísio em Creta, pág. 132.
Cálamo = xxxx p. 128
Enquistar = xxxx p. 134
Mallarmé: “La poésie s’est entièrement detourné de sa voi depuis la grande déviation homérique! – Avant Homère, quoi? – Orphée.” Dionísio em Creta, pág. 134.
“... se o método precede a idéia, na ordem da verificação, a idéia precede o método, na ordem da invenção.” Dionísio em Creta, pág. 135.
“... Na Grécia, o sábio orgulha-se de três coisas: da sua grecidade, da sua virilidade, da sua liberdade. Nascido grego, e não bárbaro; homem, e não mulher; livre, e não escravo, - completo e perfeito está o ser humano do homem grego.” Dionísio em Creta, pág. 135
“... os mistérios, com suas essenciais conotações ctônicas, agrárias, noturnas, lunares, naturalísticas, secretas, iniciáticas, demétricas, dionisíacas, pelásguicas, etc., totalmente alheias ao gênio indo-europeu e semítico, condizem com a índole, sem dúvida matriarcal, da cultura que, na idade neolítica, se estendia de Creta a Mohenjo-Daro e da Líbia ao Danúbio. Ora os mistérios clássicos, nomeadamente, os de Elêusis, são os cultos que principalmente substanciam a original veracidade dos mitos pré-helênicos.” Dionísio em Creta, pág. 137.
“... A desumanidade da mitologia seria a desumanidade de uma natureza que não conhece o homem e em que o homem não se reconhece.” Dionísio em Creta, pág. 138.
“Pré-helênica, a mitologia grega é a mitologia de uma natureza anterior à Natureza e, por conseguinte, a mitologia de um homem anterior ao Homem. Estudá-la, consistiria em descobrir que seres ancestrais através dela nos falam.” Dionísio em Creta, pág. 138-139.
! ... A mitologia não carece de esclarecimentos, pois ela é o “dado”, e não a “incógnita da equação.” Dionísio em Creta, pág. 139
“Mitologia não é alegoria; é tautegoria.” Dionísio em Creta, pág. 139.
“à essência do mito, como, até certo ponto, à essência da poesia, pertence ao não poder dizer-se senão do modo pelo qual, efetivamente se diz.” Dionísio em Creta, pág. 140
“Se heterônimas, que substantivos, se heterogêneas, que verbos usaremos para designar as essências e as potências que a mitologia representa?” Na sequência Eudoro diz: “Antes de dar uma resposta a esta questão (que, antecipadamente sabemos não ter resposta em termos de experiência comum),...” Dionísio em Creta, pág. 140.
“... Ora a primeira ordenação grega, a primeira diakósmese, no mundo dos deuses e dos homens, foi a genealogia. Dionísio em Creta, pág. 141.
“... Na poesia, as transformações insólitas de deuses, e de mortais que de algum modo tocaram o orbe do divino, em entidades terrenas, do reino vegetal ou animal, ou etéreas como estrelas e constelações, denunciam o intento, que é tão remoto como as “moral expurgations of the old rites”, - denunciam o intento, dizíamos, de extirpar da consciência helênica os últimos vestígios da pré-helênica sacralidade das coisas desumanas. Dionísio em Creta, pág. 141.
“... A mitologia não é uma linguagem em que a realidade se exprimiu outrora e que agora se exprime noutra linguagem, mas sim uma realidade que quer exprimir-se sem mediação da linguagem.” Dionísio em Creta, pág. 143
“a natureza não tem dentro” Dionísio em Creta, pág. 143
“... O Homem, ou o Espírito, é que interiorizou a natureza; ou ainda: a Natureza tem um dentro e as coisas têm um sentido íntimo, de ponto de vista do Homem, que é, todo ele, um olhar volvido para dentro.” Dionísio em Creta, pág. 143
“O intérprete de poesia e o estudioso de mitologia encontram-se diante da mesma necessidade de invocar a transcendência; uma transcendência que não fala linguagem alguma. Porque a linguagem da poesia, embora nos pareça que muito quer dizer, à beira do silêncio é que ela nos conduz, não da palavra. E também é no silêncio que amadurecem os frutos da árvore que morreu sob a infrene verbosidade das interpretações alegóricas. Música seria, talvez, o nome mais próprio da expressão mítica. NA condição, porém, de a entendermos mais na pausa do que na sonoridade.” Dionísio em Creta, pág. 145
“... A silenciosa harmonia que vibra nas pausas da sonoridade musical, e a penumbra das águas tranqüilas e profundas, que marulham de oníricas imagens, - eis a figura auditiva e visual da linguagem, ou não-linguagem, da mitologia.” Dionísio em Creta, pág. 145
“Em resumo e a modo de conclusão: a mitologia grega vive a morte dos mitos pré-helênicos. Verifica-se a certeza desta proposição, por duas vias: à uma, porque a filologia e, mormente, a arqueologia, pelas sondagens cada vez mais freqüentes e profundas, no substrato mediterrâneo, vão descobrindo que nele radica e nele germina o que será a mitologia da época clássica; e depois, porque a reflexão nos adverte de que, realizando-se o ideal de humanidade, contra a mitologia, e sendo esse ideal a mais genuína florescência do espírito grego, inverossímil seria que os gregos houvessem criado a substância, digamos assim, da mitologia que tinham de negar, enquanto se afirmavam. Desumano é o mito pré-helênico, tanto quanto é humana é a civilidade e a politicidade clássicas. E desumano, quando não por outro motivo, porque, do ponto de vista cultural, o Homem só nasce depois. Como aproximar-nos da desumanidade do mito pré-helênico? Como entendê-la e compreendê-la? Só há um meio: deixá-la exprimir-se na sua linguagem, que não é propriamente uma linguagem, como uma natureza anterior ao Homem se exprimiria na sua linguagem, que não seria propriamente uma linguagem, faltando-lhe a intimidade que só o Homem, ou o Espírito, viria instituir na sua Natureza.” Dionísio em Creta, pág. 145-146
Da Existência dos Deuses
“NA história da filosofia antiga, a religião tem sido considerada como um erro que os filósofos se esforçaram por corrigir. Mas o certo é que, na origem, desenvolvimento e fim de um culto religioso, a especulação filosófica pouco ou nada influi; designadamente, os antiqüíssimos cultos da Hélade só deixaram de ser celebrados no momento em que outra religião os preteriu, não apenas por se apresentarem como sinal de laboração no erro, mas também e sobretudo, como testemunho de colaboração no mal.” Dionísio em Creta, pág. 149
“... A crítica das tradições religiosas não concluiu, pois, pela negação da existência dos deuses no mundo descrito pela dramaturgia dos sacerdotes e pela miturgia dos poetas. Só mais tarde, após o triunfo do Cristianismo, seria absolutamente negada a existência das remotas divindades, quando lhes foi também recusado o existirem naquele outro mundo que a especulação dos filósofos lhes designara por habitáculo; e o mérito exclusivo e indiscutível do pensamento cristão reside nesta idéia que levou de vencida: uma vez banidos, os deuses, do “outro mundo”, mais lugar não havia, para onde fossem e donde tornassem a “este mundo”, para representar de qualquer modo o drama da sua existência original.” Dionísio em Creta, pág. 149-150.
“... Os deuses (a não ser talvez os “olímpicos”) não morrem na filosofia, porque uma religião só noutra religião pode morrer; e, no entanto, certo é que a filosofia não desmerece da parte que historicamente lhe cabe na “praeparatio euangelica”, visto que preparou o paganismo para a morte que lhe havia de ser dada pelo cristianismo.” Dionísio em Creta, pág. 150
“Os deuses não morrem na filosofia. A filosofia apenas altera o modo de existência dos deuses.” Dionísio em Creta, pág. 150
“... “Como existiam os deuses, antes que a filosofia lhes alterasse o modo de existirem?”.” Dionísio em Creta, pág. 151.
“Responder a esta pergunta equivaleria a reintegrar deuses e homens no mundo descrito pelo drama ritual, isto é, num mundo em que homens e deuses podiam encontrar-se.” Dionísio em Creta, pág. 151
“... ou os homens se encontram com os deuses no mundo, ou o culto religioso não possui qualquer fundamento razoável. Pois a religião é sempre humana atitude na presença de Deus ou dos deuses; é o que os homens pensam e praticam, dizem e fazem, no lugar e no instante em que Deus e os deuses lhes são presentes.” Dionísio em Creta, pág. 152
“... Por outras palavras: do mundo significado pela presença dos deuses, a única física possível é mitologia e ritual, poesia e religião. Errado seria, pois, asseverar que, antes de iniciarem a especulação filosófica, os gregos recorreram a causas sobrenaturais para explicar os fenômenos naturais. Que saberiam eles do sobrenatural, quando de todo ignoravam a natureza? Dionísio em Creta, pág. 152
“Conscientemente, nunca os gregos prestaram culto a entes naturais. Ou os entes que cultuavam, ainda não eram naturais, por ignorar-se o que fosse a natureza, ou, se já eram naturais, porque se conhecia a natureza, não os cultuavam a eles, mas à divindade que neles havia assinalado a sua presença. No primeiro caso, os deuses estavam patentes, e a natureza, oculta; no segundo, a natureza está patente, e ocultos, os deuses.” Dionísio em Creta, pág. 153
“... Toda a especulação subseqüente se esforçará por demonstrar que os deuses não existem no mundo em que existem os entes da natureza, circundados pela divindade (theín periékhon).” Dionísio em Creta, pág. 153
“O mito, na sua ambiência puramente religiosa, é reposta a uma pergunta de ninguém; solução de um problema jamais enunciado.” Dionísio em Creta, pág. 154.
“... O mundo físico e o mundo mítico são incomunicáveis; de um para outro não há caminho pelo qual os deuses transitem.” Dionísio em Creta, pág. 155.
“Como existiam os deuses, antes que a filosofia lhes alterasse o modo de existirem?” Dionísio em Creta, pág. 155.
“... O equívoco romântico consistiu de supor que, uma vez arrastado o mundo das origens, todo ele descrito pelo gesto ritual e significado pela imagem mítica, para o impiedoso meio dia da história e da consciência, ele ainda permaneceria tal qual era ou é, no meio da noite de pré-história e do subconsciente.” Dionísio em Creta, pág. 155-156.
“... Se da linguagem não tivéssemos a turva idéia de que ela outra coisa não é, senão instrumento ou utensílio, servindo o propósito de enunciar o pensamento, nunca teríamos laborado no erro de deduzir historicamente a filosofia da mitologia, ou de aceitar como naturalmente humano o trânsito da teologia à metafísica, e da metafísica à ciência positiva.” Dionísio em Creta, pág. 156.
“A Grécia, e só a Grécia, - assim o proclamam os historiadores -, levou a término um processo que se frustrou em outras culturas; designadamente, aquele processo, mediante o qual a mitologia, ou biografia dos deuses, por força da razão, se transmuta em teoria do acontecer natural, humano e divino. (...) Mas outro sinal de que soara a hora derradeira desse mundo significado pela presença dos deuses, e a hora primeira de outro mundo, caracterizado pela ausência dos mesmos deuses, - outro sinal do início de uma nova época -, é a descoberta ou a invenção do Homem. ” Dionísio em Creta, pág. 156-157.
“Mito e rito, componentes de uma só realidade puramente gramática, constituem, no étimo significado da palavra, toda a substância da vida genuinamente religiosa da Grécia.” Dionísio em Creta, pág. 158.
“... Pretende-se, é certo, que na Grécia a única característica diferencial do humano e do divino, seja o não sofrer, a divindade, o ultraje da morte. Porém, repara-se: não é a ausência da morte, como termo final da existência, o que mais distintamente caracteriza, por exemplo, o Zeus da Teogonia hesiódica, mas sim, a presença da morte, como termo inicial. A morte, ou o que à morte equivale, - a despotencialização; e a subexistência “tartárica” de uns deuses é a condição de soberania e existência “olímpica” de outros. O trono de Zeus imortal ergue-se sobre o túmulo de Crono.” Dionísio em Creta, pág. 159.
“... Que deuses, pois, eram esses, que exigiam dos homens o sacrifício de um corpo vivente? Que esperavam do derramamento de sangue e da consumição da carne?” Dionísio em Creta, pág. 161
“... Quando a filosofia grega chegou ao fim que, na verdade, não foi mais que uma frustrada tentativa de reafirmar o que negara ao princípio, é certo que as suas divindades não se chamam Deméter ou Dioniso, Átis e Cibele, Afrodite e Adônis, Ísis e Osíris, mas também é certo que o Kósmos e a Physis querem viver como vivera o mundo de outrora, isto é, querem viver uma vida cujo princípio é a morte de um deus.” Dionísio em Creta, pág. 162.
“... Mas na origem, na origem que pertence à pré-história e à subconsciência do povo grego, único mistério é o da morte iniciadora de uma vida que, antes de descoberto o espírito e a natureza, não pode ser adjetivada de natural nem de sobrenatural.” Dionísio em Creta, pág. 163.
“Em verdade, o deuses não criaram o mundo; transformam-se no mundo.” Dionísio em Creta, pág. 163.
“Os deuses primordiais, designadamente, aqueles que os gregos celebravam nos “mistérios”, são deuses que, morrendo, se transformam no mundo, ou nas coisas que dão sentido à existência neste mundo.” Dionísio em Creta, pág. 163.
Arte e Escatologia
“Definição é preceito que pode convir a uma filosofia que se ensina; não todavia, a um filosofar que se aprende.” Dionísio em Creta, pág. 165.
“... filosofia da arte é o pensamento que tem por limite uma intuição da sua essência.” Dionísio em Creta, pág. 166.
Intuição: “(...) “a simpatia, mediante a qual nos transportamos para o interior de um objeto, para coincidir com o que ele tem de único e, por conseguinte, de inexpressível”.” Dionísio em Creta, pág. 166.
Análise: “(...) “operação que reduz o objeto a elementos já conhecidos, isto é, elementos comuns a esse e a outros objetos”; e, ainda, que “analisar” consiste em “exprimir uma coisa em função do que ela não é”. Dionísio em Creta, pág. 166.
“Pois o conteúdo da intuição é transcendente ao discurso, e este é a invocação da transcendência que o verifica.” Dionísio em Creta, pág. 167.
“(...) para aquém, está o reino da banalidade, para além, o da excepcionalidade; para cá da obra de arte, reside o que naturalmente aparece como sendo o que parece; para lá, no mundo que ela nos deixa adivinhar, está o que sobrenaturalmente sugere outra ordem de ser, - o que nos aprece como sendo mais do que parece.” Dionísio em Creta, pág. 168.
“Que nos aparece, afinal, através da poesia, que é mais do que parece?” Dionísio em Creta, pág. 168.
“... Curiosa anomalia, a do povo grego, tão genialmente dotado, mas que, por má consciência da sua arte, desdenha da poesia e repele os poetas pela voz autorizada dos filósofos!” Dionísio em Creta, pág. 169
“... Se há, em Aristóteles, uma imitação da natureza, que mereça o nome de poesia, tal natureza não é certamente a natura naturata. E se o Filósofo não confunde o movimento com a trajetória do que se move, a natureza imitada é, sem dúvida, a natura naturans.” Dionísio em Creta, pág. 170.
“(...) a tragédia, embora Ésquilo proclamasse com louvável modéstia que os seus dramas não eram mais que pedaços dos suntuosos festins homéricos, a tragédia, imitando a mitologia tradicional, criou deuses em que a mentalidade grega de escol, reformada pela filosofia, já não se envergonhava de cer.” Dionísio em Creta, pág. 171
“Mistério é a segunda categoria estética, se quiserem que o belo seja a primeira; e símbolo, a terceira. Poesia não há, que não seja misteriosa; poesia não há, que não seja simbólica.” Dionísio em Creta, pág. 172.
“Um mistério pode ser enigmático; um enigma é, por vezes, misterioso. Mas enquanto o que há de enigmático em um mistério poderá um dia decifrar-se, sem que o mistério seja abolido, jamais acontecerá que a decifração de um enigma venha dissipar o mistério que alguma vez o envolveu. Dos dois, só o enigma, decifrado, deixa de o ser: a Esfinge rola no abismo, assim que Édipo decifra o enigma que ela lhe propunha, o enigma que era o seu, o enigma que ela era.” Dionísio em Creta, pág. 173.
“Mistério da poesia é, pois, “desvelamento”, revelação da originalidade, ou a verdade das coisas.” Dionísio em Creta, pág. 173.
“(...) a alegoria consiste precisamente em querer “dizer outra coisa”, que não aquela que ficou expressa. Neste sentido etimológico, é que se diz, por exemplo, ser a “caverna” do VII Livro da República uma alegoria da teoria das idéias: o sentido das imagens estaria inteiramente fora delas.” Dionísio em Creta, pág. 174.
“Em um primeiro momento de sua evolução semântica, “símbolo” designava um objeto dividido em dois pedaços que, uma vez reunidos, provavam certa relação entre seus portadores, verbi gratia, os deveres de hospitalidade outrora exercidos por um, em relação ao outro. Do sinal de reconhecimento ao sinal convencional, projetava-se em linha reta o caminho para o equívoco: símbolo = alegoria. Certo é, porém, que, na consciência religiosa –e, mais uma vez, a categoria estética se mostra incorrupta na religião-, ainda o símbolo mantém o seu esplendor de verdade: não é uma fração, mas o todo que resulta de se re-unirem as partes, - em suma, reintegração.” Dionísio em Creta, pág. 174.
“(...) O verbo que corresponde ao substantivo mythos é mythéomai, que significa “falar”, “dizer”, e ambos os vocábulos provêm de uma raiz que contém um “y” breve; o verbo que corresponde ao substantivo mystérion é myeîn ou myeîsthai, com o sentido de “fechar” (olhos, boca, ferimentos), em que a raiz my- se escreve com “y” longo, e figura, por exemplo, no latim mutus e no sânscrito mukas, ambos os termos com o significado de “mudo”, “silente”. Por conseguinte, a oposição da quantidade vocálica parece somar-se à oposição semântica entre a palavra e o silêncio, o silêncio e a palavra.” Dionísio em Creta, pág. 177.
““Descia aos Infernos”, para além de tudo o mais que possa significar (um símbolo não se deixa cingir de um só relance), significaria a transposição do último horizonte que envolve todo o campo da experiência comum. Que todo o poeta, que todo o artista de gênio alguma vez ultrapassou esse horizonte; que toda a poesia, que toda a arte, nos traz mensagens dos infernos, - lá onde as coisas têm a origem primeira e o termo final -, não sabemos quem o possa duvidar.” Dionísio em Creta, pág. 179.
“(...) O caráter equívoco ou multívoco deste ser, e não apenas do significar, em uma coisa só, todas as suas alegorias, eis a própria determinação do símbolo artístico.” Dionísio em Creta, pág. 180.
“(...) Por menor que pareça, a diferença entre a alegoria e o símbolo é rigorosa medida da transcendência da arte. Dionísio em Creta, pág. 181
“(...) A expressão poética deve ser considerada, não como outro modo de expressão do mundo não poeticamente expressável, mas como a de outro mundo que, precisamente, por ser outro, do mesmo modo se não pode expressar.” Dionísio em Creta, pág. 181
“(...) o que o intérprete faz, é dizer como à misteriosa luz do símbolo artístico, se altera este mundo, no sentido do outro.” Dionísio em Creta, pág. 182
O Ouro, signo metálico da imortalidade
(...)
O mito de psique e a simbólica da luz
O livro Lúcio, Metamorfoses ou Asno de Ouro, nos livros IV, V e VI apresenta-nos uma versão do mito de Eros e Psique.
“... nos anos derradeiros do paganismo helenístico-romano, que idéia teria associado um mito e um rito de indiscutível nobreza, às conseqüências picarescas de um ato de magia negra? Que relação existirá entre 1) as aventuras de Lúcio, 2) o mito de Psique e 3) a iniciação nos mistérios?” Dionísio em Creta, pág. 214
J. J. Bachofen: “O mito é a exegese do símbolo. Desenvolve aquele, numa sucessão de atos exteriormente ligados, o que este traz unilateralmente em si. O mito assemelha-se à exposição filosófica discursiva, na medida em que decompõe o pensamento numa série de imagens correlatas, deixando ao observador a possibilidade de tirar a última conclusão acerca do respectivo nexo (...) Demasiado pobre é a humana linguagem para revestir de palavras a riqueza de pressentimentos que desperta a cíclica mutação vida-morte e as supremas esperanças dos iniciados. Só o símbolo, e o mito correspondente, poderão satisfazer estes nobres anseios. O símbolo desperta o pressentimento; a linguagem somente esclarece. O símbolo fere simultaneamente todas as cordas do espírito humano; a linguagem necessita entregar-se sempre a um único pensamento. O símbolo mergulha as suas raízes nos mais recônditos abismos da alma; a linguagem passa como a brisa pela superfície do intelecto...” Dionísio em Creta, pág. 222-3
“... é pela linguagem escrita que, em último lugar, a consciência humana se projeta no plano do intemporal.” Dionísio em Creta, pág. 223
“Nutre a alma de muitos povos a crença de que só com a vida se paga o alto preço da contemplação da divindade: “quem vê Deus, morre”, diz a sabedoria de remotos séculos, pela voz do povo. Mas há uma alternativa: “quem vê um deus, morre ou cega!” Esta variante, genuinamente grega de uma crença tão difundida, nasceu na religião, desenvolveu-se na poesia e foi transposta para a filosofia. Por haver surpreendido uma deusa em sua esplendorosa nudez, Actéon perdeu a vida, e Tirésias, a vista.” Dionísio em Creta, pág. 227
“Se os poetas mitólogos da Grécia apresentavam como conseqüência fatal de um encontro fortuito, a morte ou a cegueira, o fato talvez se deva a que, nos cultos “mistéricos”, se representavam, embora na seqüência inversa, os atos do drama em que o chegar aos confins da vida e da morte e aos limites do dia e da noite, o mesmo era que passar os umbrais de uma vita aeterna que transcorreria a uma lux perpetua. Na verdade a equação morte = cegueira parece implicar a dos opostos, vida = contemplação. Assim se compreende que o perfeito iniciado, que ao neófito poderia dizer: “não há morte”, fosse denominado epóptes, isto é, “o que viu”. Esta equação, transpuseram-na os gregos, da mitologia para a gnoseologia;” Dionísio em Creta, pág. 228
“Muitas das nossas fórmulas não passam de ruínas da linguagem poética; trazem em si o sinal da origem que tiveram na poesia de idades pretéritas.” Dionísio em Creta, pág. 229
“Seja como for, certo parece que a conaturalidade da visão e do conhecimento é, na Grécia antiga, “fato lingüístico” antes de ser “conceito filosófico”; é “poesia da linguagem” antes de vir a ser “linguagem da filosofia””. Dionísio em Creta, pág. 235-6
Mito e Dialética em Platão (ou da Transposição Intelectual do Mistério)
“Platão é o primeiro filósofo da Grécia que faz da “expressão” original do mistério religioso uma decidida “aplicação” à expressão do mistério gnoseológico”. Dionísio em Creta, pág. 246
“Porque e para que intervém essa mito-poética na obra de Platão? Que papel desempenha ela no drama do conhecimento filosófico, argumentado por diálogos como Górgias, Fédon, República e Fedro?” Dionísio em Creta, pág. 249
“Platão incorpora no seu filosofar o princípio órfico da retribuição, e fá-lo precisamente na altura em que descobre o mundo das idéias!” Dionísio em Creta, pág. 251
“O drama dialético provoca uma objetividade que, em princípio, não pode ser a mesma objetividade provocada pelo drama religioso. Se, no término do processo lógico-discursivo, Platão nos conta um mito, na medida em que através dele pretende sugerir a verdade invocada por semelhante processo, em igual medida exclui a possibilidade de o mesmo mito sugerir o conteúdo da visão mística ou mistérica, tal como esta se oferecia àqueles que se preparavam ritualmente para contemplá-la.” Dionísio em Creta, pág. 225





